19/04/2021 - 15:54 - Opinião
Mariana Teles
Por Mariana Teles
O Brasil possui um dos regimes legais mais anacrônicos do mundo. A chegada de um novo marco normativo no país já nasce suscitando discussões acerca dos seus impactos, aplicabilidade e alcance. A Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (14.133/2021) não foge à regra. Por ter como objeto de regulação os processos de compras públicas e dialogar diretamente com o mercado e a sociedade, trata de algo extremamente sensível e definidor de nossa maturidade institucional. A contratação de bens e serviços pela administração pública sempre será uma métrica de valor da gestão e do país. O processo que a define é igualmente relevante para balizar aspectos sobre governança, transparência e controle, dado o caráter estratégico das relações entre iniciativa privada e setor público.
Há uma necessidade de abordar o ecossistema que envolve as compras públicas de maneira estratégica e integrada, considerando os efeitos da regulação econômica e da execução de políticas públicas que estão umbilicalmente relacionadas ao tema. Nesse aspecto, a legislação busca uniformizar alguns pontos e imprimir um ambiente de maior segurança jurídica. Se tratando de recortes de valores, em 2011, nos países membros da OCDE os processos licitatórios respondiam por 4% a 14% do PIB. No Brasil, na mesma época, as estimativas sugeriam que esse valor girava em torno de 8,7% do PIB. Desse valor, 1,6% era atribuído ao Governo Federal, 1,5% aos Governos Estaduais, 2,1% aos Governos Municipais (OCDE, 2011).
É prudente destacar o contorno dado às questões relativas à integridade, governança, compliance e controle social na nova lei. Desde a criação de um Portal Nacional de Contratações Públicas até a previsão da obrigatoriedade os programas de integridade nas contratações de grande vulto. Ora, se os marcos normativos são sempre respostas aos sintomas sociais – e a última quadra histórica do país revelou a promiscuidade nas relações público x privado - já repercutidas em leis anteriores (Lei Anticorrupção 12.486/2013 e Lei das Estatais 13.303/2016), a nova lei de licitações e contratos administrativos também é uma resposta legal e uma sinalização clara para a modernização da administração pública, mesmo vulnerável as críticas e discussões naturais ao processo de aculturamento do novo marco.
Há um indicativo inquestionável de um parâmetro de governança mais sintonizado com as entregas sociais pretendidas e para o cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, além de imprimir uma nova lógica estratégica sobre integridade, a partir dos caminhos apontados pela OCDE no reforço ao controle e a conformidade dos sistemas de compras governamentais.
Se antes, os Programas de Integridade e a cultura de compliance eram mencionados de forma esparsa nas legislações, a nova lei destaca inovações que já prenunciam uma racionalidade de governança mais madura e ordenada, refletindo se não o clima institucional que nós temos, pelo menos o nível de maturidade a ser alcançado, quais sejam as inovações: nas contratações de grande vulto, o edital deverá prever a obrigatoriedade de o licitante vencedor implementar um programa de integridade dentro de 06 meses desde a celebração do contrato. Uma forma de induzir o mercado a transformar a sua atividade em agente de integridade, consolidando que combater a corrupção não é uma obrigação exclusiva dos entes estatais, mas um imperativo de toda a cidadania.
Além disso, importando conceitos e práticas de governança coorporativa para o setor público, foram instituídas três “linhas de defesa” às quais as contratações públicas estão sujeitas: (i) a primeira integrada por servidores e empregados públicos, agentes de licitação e autoridades que atuam na estrutura de governança do órgão ou entidade; (ii) a segunda integrada pelas unidades de assessoramento jurídico e de controle interno do próprio órgão ou entidade; e (iii) a terceira integrada pelo órgão central de controle interno da Administração e pelo tribunal de contas.
No mesmo sentido, a administração pública foi expressamente vedada de retardar imotivadamente a execução de obra ou serviço, inclusive na hipótese de troca de chefia do Poder Executivo ou de novo titular do órgão ou entidade contratante. Além da previsão do pedido de reequilíbrio econômico financeiro do contrato este deverá ser realizado durante a sua vigência, antes da celebração de eventual aditivo, sob pena de preclusão. Trata-se da incorporação do instituto da “preclusão lógica”, há muito defendida pelo Tribunal de Contas da União.
As inovações são relevantes, sobretudo na tentativa de cristalizar a tecnologia como ferramenta de transparência. Ademais, os questionamentos também não se esgotarão. Teremos dois anos para adaptação e para desbravar as nuances de sua aplicação, automatizando processos de gestão de riscos e de planejamento orçamentário. No entanto, em que pese os reflexos no aumento das punições aos crimes licitatórios, também outra inovação da NLLC, a linha é muito tênue entre a necessidade de proteger a iniciativa privada e a urgência em punir, considerando se tratar de um patrimônio nacional e grande ativo do desenvolvimento. Não deve significar uma caça às bruxas a ponto de comprometer a competitividade e os valores do mercado. Outro ponto questionado é sobre a expectativa não atendida totalmente de maior simplificação dos processos, em algumas modalidades a burocratização permanece com contornos ainda mais sensíveis, se comparados a Lei 8.666/1993.
É de se comemorar os valores públicos de governança e integridade que a NLLC comunica, não podendo existir outro diploma legal mais apropriado para a previsão de novas regras de conformidade e incentivo à transparência. Surge com a NLLC uma inclinação de governança colaborativa que envolve mercado, administração pública e sociedade. A governança colaborativa (GC) é um modelo de interação entre agentes lastreado pelo consenso e para a produção conjunta de resultados e soluções, sendo uma perspectiva contemporânea de gestão de interesses e um meio de solucionar problemas complexos.
Nas palavras do Ministro do TCU e Embaixador da Rede Governança Brasil Augusto Nardes, somente pela governança se pode vislumbrar esperança para se trilhar o caminho que instituições brasileiras e seus entes federados promovem uma nova cultura de integridade no sistema de compras governamentais. O resultado será a execução de políticas públicas com maior eficiência e efetividade, maior controle, maior estabilidade jurídica, maior colaboração entre os agentes envolvidos nos processos de contratação e um norte claro a se perseguir: a integridade.
Para a advocacia, para a administração pública, para os órgãos de controle e sobretudo para a cidadania, resta aguardar que uma lei publicada em primeiro de abril alcance a aplicabilidade esperada e modifique de verdade o epicentro da metástase da corrupção brasileira: as contratações públicas e as compras governamentais.
Advogada. Coordenadora do Núcleo de Compliance da ESA OAB PE. Consultora Especial em Compliance e Integridade da Assembleia Legislativa de Pernambuco. Formação em Compliance, Gestão de Compliance e Compliance no Setor Público pelo INSPER SP. Membra dos Comitês Anticorrupção e Governança no Legislativo da Rede Governança Brasil. Membra da comissão de Compliance e Combate à Corrupção da OAB PE.
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