06/09/2019 - 06:36 - Opinião
Foto de divulgação
Achei estranho o cartaz: - “Dores da alma? Atendo na livraria da esquina”. Era logo ali; a um passo de onde eu estava. Como fazia aquele médico para cuidar de pacientes num ambiente tão incomum? A curiosidade fez-me aprovar o anúncio. Havia se instalado em mim um conflito existencial e uma faxina se fazia urgente.
Logo, pude perceber o estilo da consulta: os pacientes é que decidiam sobre o remédio. As prateleiras repletas de bulas literárias. Para cada enfermidade, uma indicação correspondente. E eram vários os orientadores daquele projeto inusitado: Nietzsche, Sêneca, Schopenhauer, Hegel, enfim... Corri para eles:
“Tome, Dr., esta tesoura, e corte/ Minha singularíssima pessoa/ Que Importa a mim que a bicharada roa/ Todo o meu coração, depois da morte?!” E foi Augusto quem me recebeu. A dosagem que me foi administrada, teve um efeito potencializador.
“A água da fonte é inesgotável”. Não havia uma doença fisiológica aparente; era falta de consciência. O inimigo era eu mesmo, portanto. Como não atentar para os sintomas?. fantástico! Não iria precisar mais de ansiolíticos para poder me equilibrar na corda-bamba de minha própria existência. Aqueles médicos prescreviam livros!
Passei, então, a tomar viciantes doses de Sócrates, ou seja: a buscar a verdade no meu próprio ser de sujeito. Por meio de uma leitura mais contemporânea, inspirada em sua filosofia, vi que a preocupação com a aparência e o consumo, estava me deixando alheio às coisas. “É preciso conhecer a si mesmo para não perder-se”.
Cumpri rigorosamente o tratamento: Uma consulta aos sábados, sem ordem de chegada. Olhava os títulos até que um deles me chamasse. Bastava uma só palavra para que a porta se abrisse. Assim, por entre as brechas de uma estante e outra – novas pessoas saiam de dentro das velhas carcaças e se transmudavam para a eternidade das letras, enfim, curadas.
Segui, ritualisticamente, por longos e deliciosos anos. Sempre os mesmos hábitos: chá com biscoitos, pós, ácaros e traças... - Seguro da minha relação com os outros e com o mundo, sem nunca mais precisar ser outra pessoa.
Misael Nóbrega de Sousa
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